EDIÇÃO ESPECIAL: Orgulho Autista
É especial porque eu estou retomando a newsletter depois de algumas semanas em silêncio, porque sou autista e estou exausta, mas também estou furiosa.
Saudações, navegantes!
Por onde começar essa edição mui especial de 18 de junho, dia internacional do orgulho autista?
Esse dia foi criado em 2005… honestamente, vocês lêem a parte histórica dessas coisas? Pessoalmente, eu sentia minha mente sair voando pela janela quando a professora de História começava a falar alguma coisa com datas. Números, números, bla-bla-bla, se eu não consigo estabelecer padrões e conexões, você pode apostar que eu não conseguiria guardar na minha memória.
Mas eu gostaria só de compartilhar uma curiosidade que eu achei interessante sobre essa data: a ideia surgiu em um grupo de autistas e a data escolhida foi o dia do aniversário do membro mais jovem do grupo, e eu achei isso lindo porque é exatamente o tipo de coisa que autistas fazem.
Que tipo de coisa, você deve estar se perguntando.
Hmmm.
Vamos pensar de outra forma por um momento: como um grupo de não-autistas escolheria uma data para uma celebração do tipo? A primeira ideia talvez fosse buscar algum evento histórico, mas vamos dizer que não exista um evento com força suficiente para isso, não há um grande dia em que eclodiu a revolta dos autistas.
Tergiversando: como seria a revolta dos autistas? Decidíramos ficar todos em casa? Brincadeiras a parte, isso pode ser difícil nesse momento porque não estamos unidos em uma comunidade, e um movimento precisa de pessoas que se coordenem juntas em prol de um mesmo objetivo. Mas, quando ainda tão poucos de nós têm acesso a um diagnóstico, e dentre os que possuem o diagnóstico, a maioria se encontra presa a modelos biomédicos desumanizantes e sem acesso a grupos que enxerguem o autismo pelo prisma da neurodiversidade… bom, fica difícil organizar qualquer coisa quando estamos isolados, exaustos e doentes.
Sim, doentes, porque como diversas pesquisas mostram e qualquer autista adulto poderá confirmar, viver em uma sociedade capacitista que não nos aceita não faz bem para nossa saúde mental, o que nos leva ao abuso de substância e ao desenvolvimento de quadros de depressão e ansiedade generalizada, culminando muitas vezes, infelizmente, no suicídio.
Há alguns anos, li o trabalho de Carl Hart sobre vício em drogas, e o que ele relata, após anos de pesquisa junto às pessoas viciadas, é que o elemento essencial que leva ao abuso de substâncias é a falta de conexão humana.
Pense nas implicações disso: o fator mais relevante para o abuso de substâncias que podem corroer a vida de uma pessoa não se encontra em nenhum elemento biológico daquele indivíduo, mas em seu pertencimento social. O abuso é apenas uma tragédia anunciada em uma trajetória marcada por uma falha fundamental nas relações sociais.
O que isso significa, se formos analisar uma população marcada por sérias dificuldades de conexão humana? Que constantemente relata uma aguda sensação de isolamento, de não pertencimento? E que continuamente irá ouvir que seus problemas decorrem de uma falha sua, de um defeito no seu funcionamento? Que auto estima pode sobreviver a isso? Que mente não adoeceria sob essas condições? A população autista adolescente e adulta é profundamente doente, não por fatores ligados diretamente ao autismo, mas decorrentes da vivência em uma sociedade que rejeita pessoas com características autistas. E, em contraste com a enormidade desse problema e da população afetada, eu não vejo estudos suficientes tratando desses temas - embora eles existam, em sua maioria conduzidos por cientistas autistas, como a Dra. Monique Botha.
Falando em pesquisas, recentemente eu li uma pesquisa sobre a percepção de não-autistas em relação a pessoas autistas. Os avaliadores, estudantes de graduação, responderam que não sentiam vontade de começar uma conversa com as pessoas autistas, considerando-as mais estranhas e isoladas, em comparação com os não-autistas avaliados.
Essas avaliações foram feitas com base em diferentes amostras: alguns viram vídeos curtíssimos, outros avaliaram com base em áudios e outros com base em fotos.
Ou seja, antes mesmo de ter a chance de se manifestar, a pessoa autista já é rejeitada a priori.
Sabem qual a parte que mais doeu desse estudo? Não é essa constatação da velocidade com que somos negativamente avaliados porque, bem, depois de três décadas de vivência autista, eu não posso dizer que isso me surpreendeu.
Não, a parte que doeu foi quando eles descobriram que havia uma forma das pessoas autistas não serem avaliadas negativamente: quando os avaliadores tinham acesso apenas a uma transcrição das falas, todos esses preconceitos desapareciam.
Ou seja, todo esse esforço em construir um conteúdo cuidadosamente elaborado, repetir scripts mentais à exaustão para tentar falar de forma a ser aceito? Tudo em vão, porque nossas mãos se mexem demais, nossas pausas estão nos lugares “errados”, nosso falta de contato visual incomoda.
É doído.
Mas eu suponho que seja também libertador - se não há como ganhar um jogo, isso nos deixa livres para abandoná-lo e criar outro, com nossas próprias regras, certo? E, nossa, como nós gostamos de regras, você pode apostar que nós podemos criar um jogo com regras incríveis.
É.
Talvez você esteja um pouco cansado agora, com o turbilhão de ideias, com os saltos acelerados, com o pingue-pongue nessa minha narrativa, talvez esteja com uma voz no fundo da sua mente, “mas, ela não estava falando sobre a criação do dia do orgulho autista, eu tenho a impressão de que ela não terminou de falar daquilo….” e, deixe-me dizer: você tem razão, eu não terminei.
Veja bem, eu poderia fazer um texto de estrutura cuidadosa, com o toque adequado de informalidade para o formato da newsletter, com uma progressão linear como mandam os manuais.
Mas, se estamos falando de orgulho autista, eu devo escrever de forma orgulhosamente autista: caótica, conectando e progredindo de forma não linear, indo para o ponto que for mais relevante naquele momento, sem a preocupação em estabelecer um enquadramento artificial para tornar todo o discurso mais palatável.
A artificialidade é uma coisa que dói para pessoas autistas, sabe? Acho que de tanto sermos forçados a atuar em papéis que não foram feitos para nós, com falas mecanizadas pela repetição porque não fazem sentido para nós, “Oi, tudo bem?”, “Tudo e você”, “Também, também, seguinte João, você foi demitido, passa lá no RH”, quer dizer, por que você perguntou se estava tudo bem se ia me demitir? É claro que não tá tudo bem.
É claro que não tá tudo bem.
A gente não teria um dia do orgulho autista se estivesse tudo bem.
Tem um dia lá em abril que é mais famoso quando se fala em autismo. Fala-se em conscientização acerca do autismo.
Vou ser bem clara: orgulho autista não é sobre conscientização.
Não é sobre inclusão.
É sobre resistência.
É sobre ver tudo isso de que estou falando nessa newsletter (e que você talvez tenha lido pensando “mas aonde ela está indo com tudo isso?”) - o elevado índice de rejeição a que estamos expostos, os danos a nossa saúde mental que essa rejeição acarreta, o elevado índice de suicídio em nossa comunidade e a indiferença da comunidade científica majoritária frente a todo esse sofrimento - e dizer “chega”.
Nós não vamos mais aceitar que roubem nossa voz, que pisem nos nossos corpos, que nos acorrentem e nos joguem em valas comuns.
Se os cientistas não-autistas se recusam a pesquisar como a sociedade está falhando com as pessoas autistas, então nós nos tornaremos cientistas e faremos a pesquisa necessária.
Se os profissionais não-autistas não querem nos compreender e desejam apenas nos moldar a um comportamento socialmente aceito, nós nos organizaremos em ativismos, nos tornaremos profissionais, vamos ocupar todos os espaços que forem necessários para que nossa comunidade seja ouvida e respeitada.
Nossos esforços podem não ser sempre visíveis, e pode ser difícil mesmo manter esforços quando apenas existir em uma sociedade capacitista já esgota nossas forças.
Mas nós estamos avançando, você pode ter certeza disso.
Então, para dar uma volta completa: como um não autista escolheria uma data para um dia de luta e resistência? Um evento histórico, uma figura relevante?
Não, autistas não fazem assim.
Nós não gostamos muito de hierarquias, nem de figuras de autoridade - e com as constantes violências provenientes dessas pessoas, quem poderia nos culpar? E qualquer escolha seria arbitrária e iria excluir todas aquelas pessoas que não estivessem ligadas a um determinado evento, ou que não respeitassem determinada figura dentro do movimento.
Por isso foi escolhido o dia do aniversário do membro mais jovem do grupo: porque isso é simbólico. É sobre esperança pelo dia de amanhã.
Lutamos hoje, não por nós, mas para construir um mundo um pouco melhor para os que estão vindo depois de nós.
Lutamos, para tomar emprestada uma expressão do grande Paulo Freire, para construir um mundo no qual seja um pouco menos difícil amar.
E assim me despeço,
com um coração furioso, mas cheio de amor.
Uma lista de referências um pouco bagunçada de coisas que mencionei na edição de hoje:
Sobre os julgamentos prévios que fazem de nós: SASSON, N. et al. Neurotypical Peers are Less Willing to Interact with Those with Autism based on Thin Slice Judgments. Scientific Reports, v. 7, p. 40700, 1 fev. 2017.
Sobre o trabalho incrível da dra. Monique Botha, recomendo esse artigo que é uma reflexão sobre ser cientista e ser autista: Academic, Activist, or Advocate? Angry, Entangled, and Emerging: A Critical Reflection on Autism Knowledge Production
Sobre Carl Hart e seu trabalho incrível sobre o consumo de drogas: Um preço muito alto: A jornada de um neurocientista que desafia nossa visão sobre as drogas