Se ecologia sem luta de classes é jardinagem...
...então ativismo sem luta de classes é sarau. Nessa edição, vamos falar um pouco da discussão da semana: o projeto de lei que visa regulamentar o homeschooling (ensino domiciliar).
“Os opressores, falsamente generosos, têm necessidade, para que a sua ‘generosidade’ continue tendo oportunidade de realizar-se, da permanência da injustiça. A ‘ordem’ social injusta é a fonte geradora, permanente, desta ‘generosidade’ que se nutre da morte, do desalento e da miséria.”
(Paulo Freire, em Pedagogia do Oprimido)
Não há contradição alguma em perceber que aquelas mesmas pessoas que se “comovem”, ano após anos, com a situação das pessoas em situação de rua, são as mesmas a rejeitar duramente sequer a discussão de práticas que visem a correção das injustiças sociais que promovem a existência dessas pessoas em situação de rua.
Da mesma forma, os mesmos grupos que compartilham da ideia de que crianças com deficiência devem ser segregadas ao invés de incluídas, que defendem que a permanência de crianças com deficiência com as demais “atrapalha todo mundo”, agora querem apresentar uma proposta de homeschooling (ensino domiciliar) como alternativa para aquelas crianças que não se encontram adequadamente acolhidas pelo sistema escolar atual… o que é consequência da ação política desses grupos!
Basicamente: vamos tornar sua vida tão difícil, tão desgastante, e então vamos generosamente oferecer um engodo como saída para aquela situação degradante que nós mesmos criamos.
O atual governo tentou, lá no final de 2020, instituir a criação de escolas especiais para crianças com deficiência, quando caberia ao próprio governo garantir que as escolas existentes se adequassem para receber crianças com deficiência. Felizmente, o projeto teve vida curta pois, muito acertadamente (o que não acontece sempre), o STF foi fiel ao seu papel de Guardião da Constituição e suspendeu o referido decreto, por entender que
“o Brasil internalizou, em seu ordenamento constitucional, um compromisso com a educação inclusiva, ou seja, com uma educação que agrega e acolhe as pessoas com deficiência [...] no ensino regular, ao invés de segregá-las em grupos apartados da própria comunidade”. Entendeu também o STF que o paradigma da educação inclusiva “é o resultado de um processo de conquistas sociais que afastaram a ideia de vivência segregada das pessoas com deficiência [....] para inseri-las no contexto da comunidade”.
Uma educação inclusiva é um direito fundamental que foi conquistado a duras penas: não faz muito tempo que a segregação era a regra, e ainda estamos em processo de maturação desse processo, daí o grande número de escolas que não está preparada para acolher todas as crianças.
Mas é inaceitável que, diante das constatadas deficiências do sistema atual, se retroceda à segregação.
O atual projeto de lei que visa regulamentar o homeschooling (ensino domiciliar) foi aprovado nessa semana na Câmara dos Deputados e segue para aprovação pelo Senado institui regras pífias diante da enormidade da tarefa que está sendo atribuída aos pais: que um deles tenha ensino superior ou tecnólogo, que não tenha sido criminalmente condenado, que a criança realize avaliações de desempenho…
Sobre a exigência de diploma de ensino superior, deixo aqui as palavras de Roselene (@autistaquefala) em seu post sobre o assunto:
O projeto fala que os pais devem ter curso superior ou tecnólogo. Porém, mesmo com essa formação, o despreparo dos pais pode tornar-se evidente. Mesmo que a pessoa tenha mestrado e doutorado, não terá a mesma competência que um professor que tem expertise para lidar com vários alunos em sala de aula.
Pode parecer tentador para muitas famílias que vêem suas crianças sofrerem em um sistema escolar que não as acolhe, mas retirá-las do sistema não é a solução, nem para a criança, nem para a sociedade.
A Carol (@carolsouza_autistando) fez um ótimo texto com reflexões sobre o assunto, e compartilha sua experiência com o ensino domiciliar, ao qual foi forçada após ser rejeitada pelas escolas:
Eu posso falar com propriedade porque minha educação em maior parte foi em casa. Não porque minha mãe quis, mas porque a escola não me aceitava. Em casa, fizeram um bom trabalho comigo, mas a escola fez falta no meu desenvolvimento. Eu não vivi nada do que qualquer criança viveu. A escola tem um papel importante no desenvolvimento social.
Sei que muitos pais são a favor por superproteção, mas não tem como manter a criança "na bolha" a vida toda. A sociedade vai cobrar mais tarde. Digo por experiência própria.
Eu estava preparando um outro texto para a newsletter dessa semana, mas… bom, não deu para ignorar esse assunto que mexe tanto comigo e com tantas pessoas.
A escola foi um período muito difícil para mim e talvez meu aprendizado fosse até melhor no silêncio dos estudos em casa, mas e todo o aprendizado social que eu deixaria de ter? Será que eu teria conhecido o-amigo-de-um-amigo-meu que viria a se tornar meu marido e pai da minha filha?
Bom, é isso, tenham um bom final de semana, e espero que essas linhas tenham trazido um pouco da importância de discutirmos esse tema se vamos falar de inclusão para todos.